quarta-feira, 19 de agosto de 2009

A peste negra

Sabemos hoje que a peste foi quase certamente disseminada pelos mongóis, que criaram um grande império no final do século XIII. Avançando por imensos territórios, levaram consigo também os vetores da doença. Teriam sido eles que, após a sua conquista do território chinês, foram infectados ao sul das montanhas Himalaias, já que essa região alberga até os dias atuais um dos mais antigos reservatórios de roedores infectados endemicamente. Na Ásia, os animais de transporte e as roupas, muitas vezes feitas com couro de animais felpudos dos comerciantes serviam de abrigo para as pulgas infectadas. Nos veículos marítimos, os ratos eram os principais disseminadores. O intercâmbio comercial entre o Ocidente e o Oriente, reavivado a partir do século XII, explica a chegada da doença na Europa. Em 1334 a peste causou 5.000.000 de mortes na Mongólia e no norte da China. A mortandade avançou para Mesopotâmia e Síria, cujas estradas ficaram juncadas de cadáveres dos que fugiam das cidades. No Cairo os mortos eram atirados em valas comuns e em Alexandria os cadáveres eram tantos que ficaram insepultos. Calcula-se em 24 milhões o número de mortos nos países do Oriente. BIOLOGIA DA MORTE: Descoberta em 1894, o bacilo Pasturella pestis se manifesta de três formas: a pneumônica, que ataca os pulmões; a septicêmica, que infecta a corrente sangüínea; e a bubônica, a mais comum. Em sua variação bubônica, a bactéria cai na corrente sangüínea, ataca o sistema linfático provoca a morte de diversas células e cria dolorosos inchaços nas axilas e virilha. Com o passar do tempo, esses inchaços, conhecidos como bubões, se espalham por todo corpo. Quando ataca o sistema circulatório, em sua variação septicêmica, o infectado tinha uma expectativa de vida de aproximadamente uma semana. A doença também podia atingir o homem pelas vias aéreas atacando diretamente o sistema respiratório. Essa terceira versão, conhecida como peste pneumônica, tem um efeito ainda mais devastador e encurtava a vida do doente em um ou dois dias. Os vetores do bacilo podem ser vários tipos de insetos hematófagos. O mais comum é a pulga Xenopsylla cheopis, que na época parasitava tanto o pequeno rato preto que vinha com os navios, Rattus rattus, como o rato marrom, dos esgotos. O bacilo vive alternadamente no estômago da pulga e no sangue do rato. O excesso de bactérias pode entupir o tubo digestivo da pulga, o que causa problemas em sua alimentação. Esfomeada, ela busca novas fontes de alimento (como cães, gatos e humanos). Após o esforço da picada, ela relaxa seu tubo digestivo e libera as bactérias na corrente sangüínea de seus hospedeiros. COTIDIANO MEDIEVAL: Durante a Baixa Idade Média (séculos XI a XIV) as condições de vida dos homens, fossem eles camponeses ou nobres, permaneceram basicamente as mesmas em todo o continente. Geralmente a configuração das casas obedecia a um mesmo padrão, que consistia num grande recinto sem muitas subdivisões. O piso era de terra batida, às vezes forrado com palha ou junco. O aquecimento vinha de uma fogueira, quase sempre acesa no meio da habitação. A fumaça saía por um buraco no teto, por onde entrava também a água da chuva, o que apodrecia a palha no chão. Muitas vezes havia uma única cama, onde dormiam a família toda. Os pais, no momento íntimo, preservavam sua intimidade com uma cortina de pano. Num mesmo cômodo podiam morar de 8 a 12 pessoas. Os ambientes úmidos e enfumaçados, a falta de privacidade e a promiscuidade facilitavam sobremaneira a transmissão de inúmeras doenças. Quando um membro do grupo adoecia, era praticamente impossível evitar o contágio. A arquitetura urbana seguia basicamente os mesmos padrões, com a diferença de que as residências de dois andares eram mais comuns. Às vezes havia um segundo piso na casa do artesão, que usava o térreo como oficina e loja. Isso implicava necessariamente em melhorias nos padrões da casa, como diminuição da umidade, separação física dos animais, lareiras e saídas laterais para a fumaça. Entretanto, as cidades medievais eram apinhadas de gente, com esgotos a céu aberto, o que as tornava muito mais insalubres que as casas camponesas. Conseguir água limpa para beber ou cozinhar era praticamente impossível, pois o conteúdo das fossas se infiltrava no solo e contaminava os poços e lençóis. Os rios eram poluídos com todo tipo de resíduos indesejados, principalmente os oriundos de curtumes e matadouros. Apesar da opulência, os nobres não viviam em condições melhores. Os castelos eram úmidos e infestados de ratos e baratas, mesmo reis e príncipes não possuíam educação nem costumes higiênicos, raramente tomando banho ou comendo com talheres. Essa displicência com as casas se deve ao fato de que o homem medieval passava pouco tempo dentro delas. Os camponeses trabalhavam o dia todo no campo e os nobres viajavam a maior parte do tempo. A casa era usava para dormir e se proteger da chuva ou frio. Na Abadia de Cluny, a mais opulenta da Europa, os monges se banhavam antes da Páscoa e no Natal. A igreja principalmente não o recomendava, pois a visão de um corpo nu, mesmo que fosse o seu próprio, levava invariavelmente a pensamentos pecaminosos. Havia ainda a incrível crença de que um corpo limpo seria mais vulnerável a doenças. Nas áreas urbanas, o esgoto e a água usadas eram simplesmente atiradas pela janela, muitas vezes na cabeça do transeunte que tivesse a infelicidade de estar no lugar e na hora errados. Devido ao custo do sabão, as roupas eram lavadas duas ou três vezes por ano, por isso viviam infestadas de pulgas, percevejos, piolhos e traças. O costume hoje de usarmos casacos de pele vem dessa época, em que os pêlos do lado de fora das vestimentas serviam para atrair as pulgas e piolhos e tornar sua presença pelo corpo menos incômoda. Catar piolhos era uma forma de lazer. Os recém-nascidos levavam grande desvantagem, já que as mulheres forravam a cama com lençóis sujos e velhos para dar a luz, pois assim não estragavam os bons. Entre 1/4 e 1/3 das crianças morriam antes de 1 ano de idade, cerca de 50% alcançavam a idade adulta. A dieta era imprópria e mal balanceada, composta principalmente de pão. Vinhos, carnes, leite, legumes eram acompanhamentos. TRATAMENTOS: As causas das doenças eram totalmente ignoradas. O tratamento se limitava, na melhor das hipóteses, ao isolamento e quarentena. Atribuía-se quase tudo a influência dos astros, os médicos em geral eram também astrólogos. Para os pobres a resposta era simples: todos os males eram castigos de Deus. Para quase tudo receitava-se sangria, além de infusões herbais e misturas estranhas. A ignorância sobre as causas da doença tornavam a prevenção e o tratamento impossíveis. Falou-se em terremotos, enchentes, tempestades e “pés-de-vento-malignos”, mas as teorias mais aceitáveis eram a conjunção planetária e castigo divino. O historiador Robert Muchembled nos informa que “era o ar envenenado, as miasmas e as névoas, provocadas por todo o tipo de agentes, desde um lago estagnado até a conjunção dos astros, que espalhavam a doença e a morte entre os homens”. Fogueiras imensas foram queimadas em toda a Europa, na esperança de deixar o ar mais limpo. Como proteção, os médicos iniciaram seu célebre costume de usar uma máscara de bico longo cheia de aromas protetores. Os aromas agradáveis, vindos de ervas e plantas medicinais criados pela glória de Deus impediriam o contágio com os odores pestilentos trazido ao mundo das profundezas do inferno. Assim, eles vestiam-se com trajes totalmente fechados, protegidos pelo aroma das substâncias. Alguns chegavam a obstruir todas as aberturas corporais, colocando um dente de alho na boca, incenso nas orelhas, arruda no nariz… Alguns pensavam diferente e aconselhavam expulsar o mal com o mal, queimando chifres para curar um doente ou mantendo um bode na habitação, pois o “vapor” deste animal fedorento “impede que o ar pestífero aí encontre lugar”. Viver na época medieval não era nada fácil, e além das dificuldades cotidianas, havia ainda temores crescentes de ordem religiosa. PROGRESSÃO DA PRAGA: As seguintes palavras foram extraídas de um livro, Decamerão, escritas pelo italiano Giovanni Boccaccio, contemporâneo da pandemia: “Afirmo, portanto, que tínhamos atingido já o ano bem farto da Encarnação do Filho de Deus, de 1348, quando, na mui excelsa cidade de Florença, cuja beleza supera a de qualquer outra da Itália, sobreveio a mortífera pestilência. Por iniciativa dos corpos superiores, ou em razão de nossas iniqüidades, a peste, atirada sobre os homens por justa cólera divina e para nossa exemplificação, tivera início nas regiões orientais, há alguns anos. Tal praga ceifara, naquelas plagas, uma enorme quantidade de pessoas vivas. Incansável, fôra de um lugar para outro; e estendera-se, de forma miserável, para o Ocidente.” Terremotos, secas, boatos de inundações na Ásia, a grande onda de calor do século XIII, mudanças no clima, fome por toda a parte. As pessoas daquela época sentiam que Deus as havia abandonados. Em 1348 a peste chegou ao centro e ao norte da Itália e dali se irradiou como um câncer por toda a Europa. Em sua caminhada devastadora, semeou a desolação e a morte nos campos e nas cidades. A doença provocava mortandade durante quatro a seis meses, depois decrescia. Após de ceifar diversas vidas, os centros urbanos ficavam praticamente abandonados. Os que por sorte sobreviviam à doença tinham que enfrentar a falta de alimentos e a crise sócio-econômica instalada no local. Boccaccio nos deixou um relato de tanta desordem social: “Entre tanta aflição e tanta miséria de nossa cidade, a autoridade das leis, quer divinas quer humanas desmoronara e dissolvera-se. Ministros e executores das leis, tanto quanto outros homens, todos estavam mortos, ou doentes, ou haviam perdido os seus familiares e assim não podiam exercer nenhuma função. Em conseqüência de tal situação permitia-se a todos fazer aquilo que melhor lhes aprouvesse“. Por isso, muitas cidades tentavam se precaver da epidemia criando locais de quarentena para os infectados, impedindo a chegada de transeuntes e dificultando o acesso aos perímetros urbanos. Sem muitas opções de tratamento, os doentes se apegavam às orações e rituais que os salvassem da peste negra. Em Siena mais da metade da população morreu. Outras regiões, como Bearn, na França ou o noroeste da Europa escaparam incólumes, num fenômeno que é de difícil explicação até hoje. A doença era absolutamente aterrorizante. Os bubões purgavam pus e sangue, e eram acompanhados por manchas escuras, resultantes de hemorragias internas. As dores eram fortes e os doentes em geral morriam cinco dias após os primeiros sintomas. Na forma pneumônica, o doente tinha febre alta e constante, tosse forte, suores abundantes e escarro sangrento, e morriam em três dias ou menos. Mas em qualquer das variações, tudo o que saía do corpo – hálito, suor, sangue dos bubões e pulmões, urina sanguinolenta e excrementos enegrecidos pelo sangue – cheirava extremamente mal. A depressão e o desespero acompanhavam os sintomas físicos, um cronista disse que “a morte se estampava no rosto dos condenados”. E a presença simultânea das três formas tornava o contágio extremamente rápido. Contavam-se casos de pessoas que dormiam com saúde e morriam antes de acordar. Séculos antes de Hitler, judeus foram perseguidos e massacrados na Alemanha, acusados de disseminar a doença. Guy de Chauliac, médico do papa e que sobreviveu à doença, nos informa que “a grande mortandade teve início em Avignon em janeiro de 1348. (…) Era tão contagiosa que se propagava rapidamente de uma pessoa a outra; o pai não ia ver seu filho nem o filho a seu pai; a caridade desaparecera por completo“. E continua: “Não se sabia qual a causa desta grande mortandade. Em alguns lugares pensava-se que os judeus haviam envenenado o mundo e por isso os mataram“. De modo geral, as perseguições às minorias aumentaram drasticamente. O fato de a maioria dos médicos judeus pouco poder fazer, e do fanatismo religioso que se apossou das populações aterrorizadas, contribuiu para a acusação e perseguição a essa minoria. Além disso, os judeus tornaram-se suspeitos quando, devido às suas leis de higiene (cumpridas rigorosamente), as suas vítimas foram em menor número que as de comunidades cristãs. Houve mais de 150 massacres e dezenas de comunidades judaicas menores foram exterminadas pelos motins dos cristãos, facilmente incitados pelos priores locais, apesar das condenações pelos altos clérigos. Calcula-se que em Borgonha, na França, 50.000 judeus foram assassinados. Em 1348, Filipe VI pediu a faculdade de medicina da Universidade de Paris um relatório. Os doutores se reuniram e chegaram à conclusão de que a doença se devia a uma tríplice conjunção de Saturno, Júpiter e Marte no 40° de Aquário, ocorrida em 20 de março de 1345. Finalizaram dizendo que deveria haver algum outro motivo, que “estavam ocultos até mesmo dos intelectos mais altamente formados.” Diante do avanço inexorável da praga, muitos fugiram para os campos. O fato de ser mortal não incitava solidariedade, apenas um desejo de escapar ao mesmo destino. Os corpos se avolumavam nas casas abandonadas e não lhes era dada nem mesmo a possibilidade de um enterro cristão. O resultado da epidemia era tão devastador que Boccaccio chegou a dizer que as vítimas freqüentemente “almoçavam com os amigos e jantavam com seus ancestrais, no paraíso”. A situação ficou tão desesperadora que muitos pais estavam deixando para trás seus filhos. Religiosos que ficavam encarregados de cuidar dos enfermos também abandonavam seus postos largando os moribundos a sua própria sorte. Outros, invocando a proteção de santos, desafiavam a doença e permaneciam junto aos moribundos. Frades capuchinhos e jesuítas cuidaram dos pestosos em Marselha, correndo todos os riscos. Dessa época surge a corajosa Confraria dos Loucos que, sob o apadrinhamento de São Sebastião Mosteiros, pedia alívio diante do terror da morte. Abadias e conventos eram abandonados depois do surgimento dos primeiros sinais de que também eles, representantes de Deus na Terra estavam com a peste. Nem mesmo advogados, responsáveis pela criação de testamentos dos doentes se atreviam a permanecer por perto para realizar o trabalho que deles era esperado. Magistrados e notários se recusavam a fazerem testamentos, padres fugiam da extrema unção e até os médicos recusavam-se a atender seus pacientes. Os que ficavam receitavam poções exóticas: picadinho de serpente, pílulas de galhos de gamo triturados, mirra, açafrão e até pó de ouro. Os tratamentos variavam entre a sangria, a cauterização dos bulbões, laxantes ou a aplicação de emplastros quentes. Até mesmo pérolas e esmeraldas moídas deram esperanças aos mais ricos, que se agarravam à crença de que a qualidade do tratamento era proporcional ao seu custo. O chão devia ser varrido freqüentemente e salpicado com água. Mãos, boca e narinas lavadas com vinagre e água de rosas. Recomendava-se dietas leves, abstinência de excitação e irritação, exercícios moderados e distância de pântanos e outras fontes de ar viciado. Havia também a curiosa crença de que os zeladores dos banheiros públicos estavam imunizados, e muitas pessoas iam até lá, supondo eficazes seus maus odores. Depois de apenas 5 anos, calcula-se que aproximadamente 25 milhões de pessoas haviam perecido. Isso equivalia, à época, a um terço da população européia. A morte de contingente tão grandioso de pessoas na Europa provocou conseqüências sérias que afetaram a vida local por alguns séculos. Por exemplo, faltavam trabalhadores para a realização da labuta no campo. Isso motivou os camponeses a exigir de seus senhores a diminuição dos encargos feudais e um aumento de seus ganhos. A recusa dos proprietários das terras em aceitar essas exigências levou os servos a violentas revoltas que aconteceram em vários países, como a Itália, a França, a Inglaterra e os Países Baixos. Em alguns lugares, enquanto o mal persistia, medidas preventivas foram tomadas pelos governantes. Em Milão, os representantes do poder público lacraram residências de pessoas que estavam contaminadas para evitar o contato das mesmas com pessoas saudáveis. Dessa forma pretendiam que o contágio da enfermidade não acontecesse. Em Veneza foram adotadas medidas como a quarentena e o isolamento das embarcações que chegavam à cidade em uma ilha para evitar que novos focos da peste bubônica pudessem surgir. Em Nuremberg, instituiu-se um programa de limpeza das ruas. A higiene pessoal foi estimulada, alguns trabalhadores receberam um bônus no salário destinado ao banho. Apesar de não conseguirem evitar as mortes em seus municípios, tais medidas tornaram a quantidade de vítimas inferior ao de outras cidades da Europa que não haviam tomado qualquer providência para combater a doença. A devastação da peste diminuiu após 1350. Sua marcha mortal pela Europa deixou seqüelas permanentes, transformou as relações entre as pessoas, abalou a imagem do clero, reforçou a fé pessoal e aumentou os cultos místicos. Na arte, mudou a forma da morte, doravante como um monstro horrível que levava nas costas os cadáveres mutilados.

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